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O corpo que se suporta: entre o masoquismo e o narcisismo





Há algo de silenciosamente inaugural no modo como o corpo aprende a suportar o mundo. Antes mesmo do eu, antes de qualquer palavra, existe um campo de intensidades que pulsa e que sofre — uma carne vibrante que se deixa afetar. Freud chamou de masoquismo erógeno primário essa capacidade originária de o corpo se excitar e, ao mesmo tempo, de não sucumbir à própria excitação. É o primeiro gesto de vida: suportar o impacto de existir.


Nesse ponto, o prazer e a dor ainda não se separam. O que o corpo sente é apenas o fato de sentir — e esse sentir já é um acontecimento. O bebê não sabe que sente; ele é o que sente. A excitação invade e atravessa, e o que o mantém vivo é a presença de um outro que o acolhe, que o contém, que transforma a invasão em relação. É no corpo do outro que o corpo próprio encontra os limites de sua desorganização.


O narcisismo nasce desse pacto silencioso. Antes de amar a imagem que o espelho devolve, o sujeito foi amado como um corpo suportável, como um excesso que pôde ser contido. O narcisismo primário é o fruto dessa reciprocidade primeira: o eu ama-se porque foi amado, protege-se porque foi protegido. Mas o solo sobre o qual ele se ergue é masoquista, porque é feito daquilo que o corpo foi capaz de aguentar sem se despedaçar.


Há, portanto, uma cumplicidade secreta entre o masoquismo e o narcisismo. O primeiro fornece a matéria-prima da passividade, da entrega, da vulnerabilidade; o segundo organiza essa matéria em forma, em contorno, em imagem. O masoquismo é o fundo escuro da tela sobre o qual o narcisismo desenha o rosto. O eu é a cicatriz luminosa daquilo que o corpo conseguiu não recusar.


Quando esse fundo erógeno é perdido — quando o sofrimento não encontra testemunho, quando a excitação não é acolhida —, o narcisismo endurece. Green chamará isso de narcisismo de morte: um fechamento sem espelho, uma tentativa desesperada de preservar o eu negando a alteridade. É o momento em que o prazer de existir se torna prazer de não sentir.


Mas quando o masoquismo é erotizado — quando o corpo aprende a gozar a sua própria vulnerabilidade sem se destruir —, o narcisismo floresce como um amor de vida. O sujeito pode então se reconhecer no outro sem perder-se, pode ser tocado sem dissolver-se. Esse é o narcisismo de vida que Green opõe ao mortífero: aquele que inclui a ferida, que faz da dor o sinal de uma ligação possível.


Roussillon retoma esse ponto ao falar do contrato libidinal: o acordo inconsciente que permite ao sujeito aceitar ser afetado, reconhecendo que sua identidade se constitui no campo intersubjetivo. O masoquismo primário é a condição de assinatura desse contrato: só quem aprendeu a sobreviver ao toque pode desejar o encontro.


Assim, o masoquismo erógeno primário é menos uma pulsão de morte do que uma fidelidade à experiência de ser corpo. Ele guarda a memória da excitação como potência, não como ameaça. E o narcisismo, quando enraizado nessa base viva, deixa de ser defesa e se torna forma de respiração psíquica — uma maneira de preservar o eu sem sufocar o outro.


No fim, o que chamamos de amor-próprio é apenas a história de um corpo que suportou ser amado. Entre o sofrimento e o prazer, entre o colapso e a ligação, o sujeito se inventa: um ser que aprende, pouco a pouco, a transformar a dor de ser tocado em possibilidade de se sentir vivo.



Criado com auxílio de ia

 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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