O declínio das inteligências ou a inteligência do declínio: sobre o QI como gesto classificatório e ato performativo
- Mário Bertini
- há 2 dias
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“Classificações interagem com as pessoas classificadas. Elas não são meramente reflexos da realidade. Elas moldam o modo como nos compreendemos.”
— Ian Hacking, The Social Construction of What?
Há uma inquietação que se repete com a pontualidade dos pânicos morais: o QI das novas gerações está diminuindo. A frase percorre jornais, conferências, redes sociais e relatórios de organismos internacionais com a autoridade dos números e a nostalgia dos mitos: algo está sendo perdido, algo está falhando na transmissão da razão. Mas o que essa frase realmente diz? O que ela convoca a imaginar? O que ela produz?
O QI — quociente de inteligência — é, por definição, uma medida relativa: padronizada de modo a garantir que a média seja sempre 100, com um desvio-padrão de 15. Isso implica que, em cada nova geração, os testes são recalibrados, reajustando o valor médio. A régua se redefine. E, ainda assim, a comparação entre gerações insiste em surgir como um fato incontestável: agora somos menos inteligentes. Mas como medir uma queda absoluta com base em uma régua que se redefine? Como falar de declínio quando o próprio conceito de "inteligência" que se mobiliza é histórico, cultural e situado?
Essa contradição não é erro metodológico. É efeito ideológico.
I. O construto que virou coisa
Stephen Jay Gould, em The Mismeasure of Man (1981), dedicou sua crítica àquilo que chamou de reificação — o processo pelo qual transformamos entidades abstratas e estatísticas (como o fator g) em substâncias reais, localizadas no cérebro, dotadas de essência:
> “Reification is our tendency to convert abstract concepts into entities. Intelligence, a quality of mind, is treated as a thing, a single, innate entity existing within the brain, measurable and rankable” (Gould, 1981, p. 24).
Ao falar do QI como algo que aumenta ou diminui, reificamos. Atribuímos substância a um índice. Ignoramos que o QI mede respostas específicas a tarefas específicas, e não uma essência natural da mente. Ignoramos que sua construção envolve escolhas — de tarefas, de normas, de padrões — e que tais escolhas são historicamente situadas. Ao ignorar isso, transformamos um instrumento em destino.
II. O efeito performativo das classificações
Ian Hacking, ao investigar a genealogia das classificações humanas, propôs a noção de looping effect — o ciclo pelo qual as categorias que usamos para descrever as pessoas passam a modificar o comportamento e a autocompreensão daquelas pessoas, gerando novos comportamentos, que por sua vez realimentam a categoria. Um exemplo clássico é o diagnóstico de "débil mental", que ao ser introduzido não apenas descreveu um grupo, mas passou a definir práticas escolares, sociais e subjetivas em torno desse grupo.
> “Kinds of people are not like chemical elements. The classifications interact with the classified. [...] People come to experience themselves in terms of the classifications that are imposed on them” (Hacking, 1995, p. 33).
Aplicado ao QI, o efeito é claro: dizer que uma geração é “menos inteligente” não apenas descreve, mas conforma subjetividades. Um adolescente que escuta que pertence à “geração da queda do QI” não apenas escuta, mas carrega isso como um traço identitário. Os diagnósticos estatísticos ganham estatuto ontológico. O número vira modo de ser.
III. O QI como ato classificatório e tecnologia do eu
Aqui se cruza a crítica foucaultiana. O QI, como ferramenta, não é apenas instrumento técnico: é dispositivo — no sentido que Foucault confere ao termo em Microfísica do Poder. É uma forma de poder-saber que articula discursos, instituições, normatividades e subjetivações.
> “O que estou tentando apreender é o conjunto heterogêneo que compreende discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais etc. [...] O dispositivo é justamente a rede que se pode estabelecer entre esses elementos” (Foucault, 1977, p. 244).
O QI, nesse sentido, não mede uma essência, mas produz sujeitos. Ele delimita fronteiras do que é considerado "inteligente", normatiza condutas, estrutura práticas escolares, orienta políticas públicas, e, sobretudo, cria tipos humanos: o superdotado, o disléxico, o inapto, o promissor.
É um ato performativo — à maneira de Austin e Butler — porque faz acontecer aquilo que nomeia. Classificar é fazer existir. Medir é inscrever na carne. Uma criança que é chamada de “acima da média” ou “abaixo do esperado” não apenas é medida: ela é moldada. O QI, nesse sentido, age como pronome social: posiciona, desenha, inventa.
IV. Inteligência como função histórica
Dizer que o QI está caindo é um gesto que projeta no presente uma narrativa de perda, degenerescência, declínio civilizacional. Mas raramente se interroga de qual inteligência estamos falando. O que o QI mede é um certo tipo de raciocínio lógico-abstrato, historicamente valorizado em contextos escolares, industriais e militares. A inteligência espacial, emocional, ética, narrativa, estética, corporal, relacional — todas essas dimensões permanecem fora do escopo dos testes.
Como lembra Bruno Latour, “nunca fomos modernos”; talvez também nunca fomos tão inteligentes como acreditamos — nem tão burros como tememos. O que muda, em cada época, é o regime de valorização dos saberes. E o que está em crise hoje pode não ser a capacidade cognitiva, mas a crença no modelo de inteligência como capital meritocrático, adaptativo e eficiente.
V. O que realmente declina?
Talvez o que esteja declinando não seja o QI, mas a própria legitimidade das hierarquias cognitivas baseadas em performances padronizadas. Talvez estejamos assistindo à crise de um regime epistêmico que sustentou a supremacia de certas formas de saber e excluiu outras. Talvez estejamos, enfim, abrindo espaço para inteligências outras: as que não cabem na régua, as que resistem à mensuração, as que se manifestam na escuta, no cuidado, na criação, na hesitação.
É preciso lembrar, com Hacking, que as classificações humanas não são fatos brutos, mas invenções produtivas. E, com Foucault, que todo diagnóstico é um ato de poder. E, com Gould, que o perigo está menos nos testes do que nas narrativas que construímos com eles.
Talvez o verdadeiro gesto de inteligência — hoje — seja justamente interrogar o desejo de medir a inteligência.
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Referências
Foucault, M. (1977). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.
Gould, S. J. (1981). The Mismeasure of Man. New York: Norton.
Hacking, I. (1995). The Social Construction of What? Cambridge: Harvard University Press.
Hacking, I. (1999). The Social Construction of What? (Capítulo “Kinds of People”).
Flynn, J. R. (2007). What is Intelligence?. Cambridge: Cambridge University Press.
Butler, J. (1997). Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York: Routledge.
Austin, J. L. (1962). How to Do Things with Words. Oxford: Oxford University Press.
Criado com auxílio de IA
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