O Masoquismo Erotogênico e o Nascimento da Profundidade
- Mário Bertini
- 18 de out.
- 3 min de leitura
Há uma dor inaugural que não destrói, mas funda. Uma dor tão precoce que ainda não se distingue do prazer — vibração confusa do corpo, pura energia sem destino, que pulsa e arde antes de qualquer palavra. Freud a chamou de masoquismo erotogênico, e talvez seja ali, nesse ponto em que o corpo aprende a sentir, que a alma começa a se formar.
O bebê, exposto ao mundo, depende de alguém que o traduza. O toque que contém, o olhar que reconhece, o ritmo que regula — tudo isso ensina que a dor pode ser suportada, que o excesso pode ser vivido. Quando o outro responde, o sofrimento se transforma em linguagem: a tensão se converte em laço, a excitação em presença. O masoquismo erotogênico, então, se revela como uma sabedoria vital: a arte de vincular a vida ao desprazer, sem ser devorado por ele.
Rosenberg chamaria isso de masoquismo guardião da vida. É o poder de atravessar a dor sem se perder, de esperar sem se apagar. É o tecido invisível da resistência, o lugar onde o sujeito descobre que pode continuar existindo mesmo quando algo o fere. O masoquismo erotogênico, em sua forma boa, é a base de toda capacidade de simbolização: ele permite pensar o sofrimento, dar-lhe forma, representá-lo.
André Green diria que o masoquismo é o ponto de articulação entre o corpo e o pensamento — a energia crua da excitação que, contida e modulada, torna-se representação. Roussillon, por sua vez, lembraria que é nesse campo de trocas entre o Eu e o Outro que a dor encontra eco e sentido. O sofrimento só se torna humano quando é partilhado, quando encontra uma alteridade capaz de reconhecê-lo.
E é aqui que entra a contribuição de Marília Aisenstein: ela resgata o masoquismo vital como dimensão erótica da existência. Para ela, há uma sensualidade própria na capacidade de sofrer — não uma busca pela dor, mas um modo de sentir-se vivo dentro dela. O corpo masoquista, em sua leitura, é o corpo que resiste à morte ao permanecer sensível. Sofrer torna-se uma forma de preservar o vínculo com o mundo, uma maneira paradoxal de afirmar a vida.
Aisenstein vê, portanto, no masoquismo erotogênico, a raiz da ternura e da compaixão. Ele é o que nos permite permanecer abertos ao outro, mesmo quando o outro nos fere. O prazer e a dor entrelaçados não são sinais de patologia, mas de humanidade — pois só sente quem ainda está vivo, só ama quem suporta o risco de perder.
Mas quando esse processo falha — quando o outro não contém, não responde, não sonha junto — o masoquismo perde seu caráter vital e se torna mortífero. A dor, antes via de ligação, converte-se em circuito fechado; o sujeito não mais sofre com o outro, mas contra si mesmo. Rosenberg chamaria isso de masoquismo mortífero, a versão degradada daquela força primeira que, quando bem sustentada, é fonte de profundidade e criação.
Um masoquismo erotogênico bem elaborado é, assim, a condição de uma subjetividade que suporta sua própria complexidade. Ele é o solo de onde brotam a empatia, o desejo, a espera, a possibilidade de amar sem se anular. Aisenstein diria que é nele que o sujeito encontra “a coragem de sentir-se tocado pelo mundo”.
A personalidade que nasce dessa experiência conhece o limite e, por isso mesmo, é capaz de ternura. Sabe que a dor é o reverso do vínculo, e que só quem suporta a ferida da alteridade pode viver o amor em sua inteireza. Nesse lugar onde o prazer e o sofrimento se confundem, o ser humano adquire espessura, ritmo e verdade — a carne do espírito.
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