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Sobre a Vergonha e a Raiva a partir de uma Perspectiva Relacional

Costumo pensar em vergonha e raiva como dois lados de uma mesma moeda: eles emergem em nossa experiência mais profunda, na forma de afetos que nos desestabilizam e, ao mesmo tempo, nos instigam a compreender melhor quem somos. Se a vergonha é o ato de sentirmos nossa fragilidade exposta aos olhos do outro, a raiva pode nascer como a resposta quase imediata de proteção do self, uma barricada emocional erguida para impedir que essa ferida se aprofunde. Mas, se encaramos esses sentimentos apenas como opostos ou como meras reações automáticas, perdemos de vista o quanto eles estão intimamente entrelaçados — principalmente no contexto relacional que a psicanálise contemporânea tanto valoriza.


Ao longo do meu percurso, observei que a vergonha costuma ser um alerta de nossa vulnerabilidade. Nas sessões de análise, é frequente que alguém desvie o olhar, abaixe a voz ou até mude de assunto quando algo que o envergonha vem à tona. A marca da vergonha está na experiência de “ser olhado” — e, nesses momentos, a pessoa não apenas se percebe vista pelo outro, mas sente que aquilo que é mais genuíno em si se encontra exposto. Em contrapartida, a raiva emerge como uma espécie de escudo: uma forma de reaver o controle. Uma força que diz: “não me olhe dessa maneira, não me condene dessa forma, não ouse tocar nesse ponto sensível”.


A perspectiva relacional em psicanálise — representada por nomes como Stephen Mitchell, Lewis Aron, Jessica Benjamin, entre outros — destaca que o psiquismo não existe isolado em uma bolha, mas em constante interação com outras mentes. Isso significa que a vergonha e a raiva não são apenas afecções intrapsíquicas ou estados internos que cada pessoa carrega consigo, e sim processos dinâmicos que tomam forma na presença do outro. Em vez de ver a vergonha apenas como uma defesa egóica ou a raiva como um impulso destrutivo que necessita de regulação, a psicanálise relacional enfatiza o entre — o campo intersubjetivo onde analista e paciente, mãe e filho, parceiros e amigos se encontram para construir sentidos acerca dessas emoções.


Diante desse olhar, a vergonha se revela como uma emoção que pode tanto corroer a autoestima quanto convidar o indivíduo a examinar a natureza de seu desejo de se relacionar. Afinal, sentir vergonha implica que temos um desejo de sermos vistos, aceitos, amados — um impulso que o outro pode frustrar ao apontar nossas imperfeições ou fragilidades. Ao mesmo tempo, a raiva pode ser compreendida como um sinal de que algo valioso está sendo ameaçado, uma defesa ou uma reivindicação de dignidade. Dentro de um vínculo relacional, a raiva pode dizer: “Quero ser reconhecido na minha dor, na minha integridade; não quero ser reduzido ou negado”.


No consultório, é comum observar como a raiva aparece para encobrir uma dor que antes foi vergonha pura. O paciente, temendo o olhar reprovador ou a indiferença do analista, pode reagir agressivamente para manter, paradoxalmente, um senso de agência. Nesses momentos, o trabalho analítico passa por legitimar a raiva como uma defesa compreensível, mas também por acolher a vergonha que está no cerne daquela experiência. A escuta empática, ao reconhecer tanto o afeto que protege (raiva) quanto o afeto que revela a ferida (vergonha), permite ao sujeito reorganizar as fronteiras de sua identidade de modo menos rígido — e, quem sabe, mais amoroso consigo mesmo.


Por outro lado, há situações em que a vergonha se cristaliza em silêncio, retraimento ou dissociação, enquanto a raiva se transforma em uma autoagressão sutil ou camuflada. Em muitos pacientes, a raiva que não encontrou espaço no relacionamento primário (por medo de retaliação ou abandono) pode voltar-se contra si mesmo na forma de ressentimento ou sintomas depressivos. Nesse sentido, o analista relacional se empenha em construir um contexto seguro, em que a raiva e a vergonha possam ser expressas, reconhecidas e simbolizadas. Assim, o indivíduo aprende a converter a vergonha em autorrevelação autêntica e a raiva em força de afirmação pessoal, em lugar de continuar reproduzindo padrões destrutivos ou autopunitivos.


Portanto, pensar em vergonha e raiva a partir da psicanálise relacional implica compreender que essas emoções se materializam e se transformam dentro de um campo compartilhado, onde cada parte influenciou e continua a influenciar a outra. Se antes a vergonha era vivida como uma laceração solitária do eu, e a raiva como um impulso isolado, o olhar relacional as recoloca em seu devido lugar: como expressões que só ganham pleno sentido na presença do outro, numa busca incessante por reconhecimento e pertencimento. E, é justamente nesse espaço da relação — incluindo a relação terapêutica — que podemos ressignificá-las, enxergando nelas caminhos para a construção de um self mais resiliente e conectado.



Criado com auxílio de IA


 
 
 

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©2023 by Mário Bertini Psicólogo e Psicanalista

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