Tempo de Muda: A Clínica como Travessia Relacional
- Mário Bertini
- 15 de mai.
- 4 min de leitura
O lento desabrochar da transformação terapêutica assemelha-se a um rio subterrâneo que, invisível sob a terra, escava cavernas de pedra e solo até encontrar a superfície: não há atalho que acelere o curso da água; só a paciência permite que ela descubra o seu próprio itinerário. Na psicanálise relacional, esse rio não corre apenas pelo solo do indivíduo, mas atravessa o campo mútuo do vínculo, onde cada encontro se faz gota que, ao cair, modela paisagens internas e externas.
No âmago desse processo estende-se a hipótese de que a mudança não mora no diagnóstico, nem no insight momentâneo, mas no movimento lento e insistente de co-construção entre analisante e analista. Stephen Mitchell já nos advertiu que “o analista não é uma tela em branco, mas um sujeito participante cuja presença e subjetividade moldam o processo analítico.” É nesse diálogo vivo, esse campo intersubjetivo, que as redes sinápticas, as narrativas de apego e as defesas profundas se encontram diante de um espelho translúcido — e, apenas então, começam a rever seus contornos.
Em cada sessão, o indivíduo traz consigo a arquitetura de sua vivência: memórias implícitas, roteiros de afeto antigos, âncoras de segurança fragmentadas. A neurobiologia relacional nos ensina que os circuitos emocionais são construídos — e reconstruídos — a partir da experiência intersubjetiva: como redes de trem que só se ativam com o peso do comboio, elas só se fortalecem quando atravessam, repetidamente, o mesmo trilho seguro. Não é um acaso que um vínculo terapêutico estável seja a argamassa que consolida essas vias: ao sentir-se visto e contido, o analisante permite que a plasticidade neural opere a lenta invenção de caminhos alternativos.
Mas essa invenção carece de um solo afetivo capaz de acolher fraturas e repetições dolorosas. Donald Winnicott já afirmara que “não existe tal coisa como um bebê. Há um bebê e alguém.” Na psicanálise relacional, esse “alguém” dispensa a neutralidade clássica e oferece participação empática: o terapeuta, como jardineiro de solos emocionais, rega a muda do sujeito com presença, reflexividade e tolerância à angústia. Cada reparo — também chamado de “ruptura-reparação” por Jessica Benjamin — devolve ao analisante a experiência vivida de ser seguro num campo onde se admitia apenas a insegurança.
No entrelaçar de vozes internas e externas, o aparelho psíquico vai se reformando: as defesas que antes se erguiam como muralhas — projeções, dissociações, negações — começam a ruir em pequenos fragmentos, como o mármore esculpido a lasca por lasca. Philip Bromberg descreve que o self se organiza em mosaicos de estados dissociados; a tarefa relacional é mostrar ao sujeito que esses mosaicos podem dialogar sem ruir a unidade interior. Cada lasca retirada é um ganho de coesão, mas também exige tempo — não por fraqueza, mas porque só a cadência paciente do vínculo permite sentir, dizer e transformar.
O apego, por sua vez, deixa de ser apenas uma categoria de diagnóstico para se revelar como fluxo dinâmico entre o self e o outro. Otto F. Kernberg e logo depois os relationalistas–como Lewis Aron–mostram que nossos “modelos de relação” se atualizam em presença de figuras significativas. Na clínica, o analista não reproduz padrões ancestrais, mas oferece uma nova coreografia possível: real-time, ele dança com o analisante, ajustando-se aos tempos de aproximação e distanciamento, reconstruindo a confiança passo a passo.
E a neurobiologia, sempre insistindo em suas evidências empíricas, hoje nos dá conta de que o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, frequentemente hiperativado em estados de trauma e insegurança, só encontra equilíbrio em contextos de regulação mútua. Não há suplemento farmacológico, pesquisa de bancada ou protocolo manual que substitua a vivência relacional reparadora: é a co-regulação, mais do que o insight, que traz alívio e promove reorganização neuroquímica.
Assim, o tempo da terapia emerge não como um fardo a ser vencido, mas como condição de possibilidade. Cada sessão não é um passe de mágica, mas uma tricota de momentos em que se olha para dentro e se é olhado de volta, sem pressa e sem garantia de resultados imediatos. O encontro relacional se dá em presente vivido, onde passado e futuro se entrelaçam; e só nessa tessitura, por vezes dolorosa, por vezes poética, é que uma nova narrativa de si pode brotar.
O analista relacional abraça tanto sua própria vulnerabilidade quanto a do analisante, reconhecendo que o campo se constrói em coautoria. Não se trata de desvelar “a verdade” oculta pelo inconsciente, mas de reinventar os contornos do eu em companhia de um outro que participa ativamente. É esse caráter dialógico que confere à terapia seu ritmo próprio: um ritmo que respeita a inércia inicial, convoca a curiosidade intermediária e celebra, na fase final, a emergência de uma voz nova, ainda que sempre ecoe, como riacho distante, o som do rio subterrâneo que veio de longe.
E assim seguimos—um sopro após o outro, uma sessão após a outra—até que, na superfície, a água cristalize novas margens, e o sujeito reconheça em si mesmo uma geografia alterada: menos rígida, mais vibrátil, capaz de dançar no encontro com o outro sem medo de se dispersar. Esse é o tempo da mudança profunda: um tempo relacional, orgânico e irreversível, tecido pela confiança e pela coragem de atravessar juntos o rio invisível.
Criado com auxílio de IA



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